Por Armando Castelar Pinheiro

No Brasil, as primeiras menções à privatização datam de 1974. Na época, as estatais vinham se expandindo com força, reflexo da reforma administrativa de 1967 (Decreto-Lei 200), das mudanças do início do governo Geisel e de estímulos diversos, como isenções tributárias e créditos subsidiados. As empresas privadas se viam incapazes de competir com elas, razão pela qual defendiam um freio ao expansionismo das estatais.

Esse freio só veio, porém, em 1979, com a Secretaria de Controle de Empresas Estatais (Sest). Também em 1979, em um de seus primeiros discursos, o presidente João Figueiredo revelou a intenção de privatizar as estatais que não se destinassem a corrigir falhas de mercado e promover a segurança nacional. Todavia, só em 1981 criou a Comissão Especial de Desestatização.

Nos anos 1980, dezenas de estatais foram privatizadas e várias outras fechadas. Eram empresas pequenas, algumas estatizadas em anos anteriores em operações-hospital do BNDES, situadas em setores como celulose, tecelagem, siderurgia, mineração e hotelaria. Em avaliação feita no final da década, porém, o Banco Mundial concluiu que esse “primeiro flerte do Brasil com a privatização foi um clássico exemplo de fracasso”. Em especial, porque os resultados ficaram bem aquém da retórica governamental. É fundamental não repetir os erros do passado, em especial os do início do governo de Fernando Collor.

A experiência dos anos 1980 trouxe muitas lições, que foram incorporadas no Programa Nacional de Desestatização (PND), criado em 1990. Nos governos Collor e Itamar Franco grandes empresas, criadas originalmente como estatais, foram privatizadas. Na maioria eram empresas manufatureiras: grandes siderurgias, participações em empresas petroquímicas e fabricantes de fertilizantes, além da Embraer, por exemplo.

Também aqui houve, porém, um certo grau de “fracasso”. Isso porque a meta inicial da equipe econômica de Collor era privatizar muito mais e bem mais rápido. Com isso se acreditava ser possível utilizar as receitas da privatização para abater a dívida pública.

Yogi Berra dizia que “na teoria, não existe diferença entre a teoria e a prática. (Mas) Na prática existe”. O principal motivo para esses “fracassos” é que na prática é bem mais difícil privatizar do que na teoria, ainda que na teoria não haja diferença. O ministro da Economia promete privatizar de A a Z, mas quando começa o processo ele esbarra em forte oposição, dentro e fora do governo. Essa vem dos políticos que fizeram indicações para cargos nas empresas e dos funcionários, fornecedores e clientes, que em geral gozam de privilégios nas suas relações com a empresa. São grupos bem organizados que operam com aqueles ideologicamente contrários à privatização para criar barreiras práticas à venda das estatais.

Além disso, as empresas não veem prontas para serem vendidas. Algumas sequer têm seus papéis todos em ordem: registro de imóveis, por exemplo. Além disso, há sempre passivos contingentes e pendências a serem equacionados ou pelo menos valorizados. E é necessário decidir o que fica dentro da empresa e o que fica fora, tanto em relação a passivos como a ativos. Também se precisa dar publicidade à venda – data rooms, por exemplo -, procurar potenciais interessados, etc. E é preciso definir a que preço e em que condições as empresas serão vendidas, assim como auditar todos esses procedimentos, garantindo sua correção e transparência e que atendam ao interesse público.

A privatização brasileira teve seu auge no primeiro mandato de FHC, quando várias estatais de infraestrutura foram privatizadas, algo impensável até uns anos antes. Para isso, porém, foi necessário mudar a Constituição e reformar o marco regulatório dos setores em que se deu a privatização, entre outras coisas, criando agências reguladoras. Também foram fundamentais o Congresso ter aprovado o PND dispensando o Executivo de passar cada operação individual pelo Legislativo, o que teria inviabilizado o programa, e o sucesso com as operações dos anos 1980 e da primeira metade da década de 1990, tanto em termos da sua lisura como da melhora de desempenho das empresas privatizadas.

A privatização nunca parou, mas perdeu fôlego a partir do início deste século, quando o foco passou para as concessões. Também nessa fase, porém, ficou clara a enorme distância entre a teoria e a prática, com os governos esbarrando em projetos mal preparados, captura ideológica etc.

O governo eleito promete ampliar fortemente a privatização, que seria seu primeiro passo no processo de ajuste fiscal e redução da dívida pública. É uma boa meta: há muito a ser privatizado, de participações acionárias detidas por bancos públicos a grandes empresas, cuja capacidade de investir e crescer depende de se livrarem das amarras públicas.

Porém, é fundamental não repetir os erros do passado, em especial do início do governo Collor. A criação de uma Secretaria de Privatização é alvissareira, mas não basta. É preciso definir procedimentos, envolver profissionais capacitados a lidar com os problemas listados acima e garantir um mínimo de autonomia. Não vai ser fácil, nem rápido.

Armando Castelar Pinheiro é coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV e professor do IE/UFRJ. twitter: @ACastelar. Escreve mensalmente às sextas-feiras. As opiniões aqui contidas são exclusivamente do autor.