Valor Econômico
04/09/2020

Por Vinicius Branco

O sonho da sociedade de ver revertidos na forma de serviços públicos os muitos impostos que pagamos parece uma mera ilusão de ótica

Quem trabalha com o Direito Tributário, sobretudo com o contencioso judicial, certamente já notou que são cada vez mais frequentes as súplicas da Fazenda Pública dirigidas aos Tribunais Superiores para que seja declarada a exigibilidade de tributos discutidos judicialmente, sustentadas em alegado prejuízo que essa ou aquela ação provocará se for julgada a favor do contribuinte.

Desfilam montantes extraordinários, sempre na casa dos bilhões, buscando sensibilizar os juízes com o fácil apelo de que o dinheiro que deixa de ser pago ao contribuinte – tenha ele razão ou não – seria melhor utilizado na saúde, educação, e segurança.

O sonho da sociedade de ver revertidos na forma de serviços públicos os muitos impostos que pagamos parece uma mera ilusão de ótica.

Só depois de pontuar exaustivamente esses fatos é que os procuradores ingressam no mérito da discussão, relegando-o a questão meramente secundária.

O Judiciário, atento e preocupado com os impactos econômicos provocados por suas decisões, não hesita em fazer uso de instrumentos extremos – como a medida cautelar fiscal, instituída pela Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, cujo art. 4º autoriza “o Presidente do Tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o poder público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”

Esse proceder gera desconfiança e insegurança no contribuinte, que amarga a sensação de “ganhou, mas não levou”. Coloca também em xeque a credibilidade das instituições, por permitir que um direito já vislumbrado como líquido e certo por instâncias inferiores seja sumariamente retirado, sem sequer apresentar uma justificativa acerca dos motivos de direito que ensejariam a aplicação de tão extravagante medida.

Pior do que isso, essa postura estimula o Legislativo a editar normas sabidamente ilegais ou inconstitucionais, esperando que o Judiciário o socorra mais tarde. Atribuem à Fazenda Pública o tratamento dispensado aos hipossuficientes, invocando o exercício do poder moderador para arbitrar litígio tributário.

Essa reação, que interrompe o andamento regular do processo e surpreende o contribuinte que de boa-fé, recorre aos Tribunais para se proteger, impõe uma reflexão sobre o papel do Judiciário na sociedade moderna, particularmente no Brasil.

Todos sabemos – e mais ainda, os membros de nossas Cortes Superiores – que o orçamento público é finito, limitado, e insuficiente para atender as despesas sempre crescentes, e as demandas que se avolumam.

Em últimas instância, sabem que a concessão de medidas em favor dos contribuintes, sejam ou não procedentes e justas, pode resultar em redução da verba orçamentária destinada à manutenção do próprio sistema judiciário. Afinal, de que serve a autonomia para aprovar proposta orçamentária de seus órgãos se restar frustrada a previsão de receita necessária à sua execução?

Há inclusive quem vislumbre a presença de conflito de interesses na prática de suspender indefinidamente a ordem que protegia o contribuinte, afirmando que o Judiciário sempre se inclinará a decidir em favor da administração pública quando estiver em jogo o delicado equilíbrio das contas públicas, deixando para mais tarde o cumprimento da lei.

Um bom – melhor dizendo, um mau – exemplo do que ocorre de fato no mundo real está no descaso com que são tratados os titulares de precatórios judiciais, representativos da dívida pública sistematicamente parcelada, prorrogada, renovada e novada. Não bastassem as sucessivas prorrogações, decretou-se agora a substituição de índices que representam a inflação pela Taxa Referencial (TR), que nada expressa.

Não soa exagero considerar esse expediente como uma forma de enriquecimento ilícito, na medida em que permite a apropriação de bens privados pelo Estado sem que se ofereça a justa e pontual reparação a quem que se vê, do dia para a noite, privado de seus bens e direitos.

Essa forma mesquinha e sorrateira de atenuar os problemas inerentes à nossa precária gestão pública, somada à pouca responsabilidade dos que aprovam leis aumentando despesas de forma permanente, ou determinando o cumprimento de ordens sem indagar como serão custeadas, acabam minando a confiança na Justiça e deturpando o precioso conceito de cidadania.

Oportuno recordar que a Lei de Responsabilidade Fiscal, que fixou limites aos gastos governamentais, encontra-se totalmente desfigurada, tantas foram as intervenções do Congresso e do próprio Judiciário para flexibilizá-la.

Quanto à Emenda Constitucional nº 95, também conhecida como a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, mal foi aprovada e já passou a sofrer tanta pressão para atenuação de suas balizas que o seu provável esfacelamento já não surpreenderia ninguém.

Especialmente por essas, mas também por outras razões, é que o sonho da sociedade de ver revertidos na forma de serviços públicos os muitos impostos que pagamos parece ser, cada vez mais, uma mera ilusão de ótica.

Vinicius Branco é advogado em São Paulo e sócio do escritório Levy & Salomão Advogados

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