Valor Econômico
27/04/2020

Por Marcelo Allain

Delimitar frustração de receitas ou alta de despesas no reequilíbrio de contratos de concessões não é trivial

A crise da covid-19 tem sido muito mais intensa e rápida do que se poderia imaginar. Além do tremendo impacto na saúde pública, diversos setores da economia precisaram se adaptar aos tempos de pandemia. O setor mais atingido foi o de aeroportos, com queda de 90% do número de voos, passando por mobilidade urbana (cerca de 60% de queda), rodovias (cerca de 30% de redução no tráfego) e energia elétrica (consumo 8% menor), entre outros.

A recente crise, que se iniciou com a saída do ministro Mandetta, a aproximação do governo ao “Centrão”, as denúncias do ex-ministro Moro e o desencontrado pronunciamento do presidente Bolsonaro, traz grave instabilidade política a um quadro já esgarçado na infraestrutura. A seguir, analisamos cinco desafios a serem superados.

Recursos públicos são muito necessários, mas em caráter excepcional e por tempo limitado, dada a restrição fiscal

O primeiro desafio ao setor de infraestrutura é funcionar de modo fluido durante a quarentena. Sem o fornecimento de água, energia elétrica, telecomunicações e transporte de cargas e de pessoas o caos se instalaria no país. O problema é que a entrada em quarentena se deu de forma desorganizada e num quadro de anomia, sem clareza de quais atividades são essenciais, sobre quem comanda a abertura ou fechamento de estradas, fronteiras e atividades econômicas. A possibilidade de municípios ou Estados decidirem sobre o fechamento de suas fronteiras impediria o bom funcionamento da logística integrada, podendo resultar num quadro de desabastecimento e disrupção do tecido social.

Estamos progredindo em organizar a fluidez da infraestrutura, com grande envolvimento do Executivo e Legislativo. Diminuíram as reclamações de caminhoneiros sobre barricadas em estradas e sobre a oferta de alimentação, higiene e manutenção ao longo das rodovias. O setor aéreo possui um novo e reduzido mapa de rotas, que preserva conexões entre as principais cidades. A coordenação federal é essencial nestas decisões.

Ressalte-se que as empresas de infraestrutura, por suas características de realizar investimentos a longo prazo, e frequentemente prestando serviço público em concessões com monopólio natural, não conseguem ajustar sua capacidade de oferta, por exemplo reciclando os ativos. Em outras palavras, as concessionárias não conseguem utilizar parte dos aeroportos, rodovias, redes elétricas para outra finalidade, de forma que não conseguem reduzir estruturalmente a oferta de serviços.

Assim, uma brusca queda de demanda penaliza os resultados operacionais, sem muita capacidade dos gestores para reestruturar suas empresas. Isto traz problemas de liquidez no curto prazo às empresas concessionárias, para os quais os reguladores e o governo já estão atentos. Caso este quadro permaneça, podem surgir no médio prazo problemas de solvência das empresas.

O segundo desafio da infraestrutura é justamente evitar que as dificuldades de liquidez se transformem em problemas de solvência das empresas. A depender da duração da pandemia e da quarentena, as empresas enfrentarão dificuldade em atender os covenants de dívida (restrições como, por exemplo, Ebitda/serviço da dívida), pois terão menor receita e maiores despesas operacionais, reduzindo o Ebitda e, em alguns casos, serviço da dívida aumentado com a depreciação cambial.

Se houver inviabilidade financeira das empresas concessionárias, será difícil retomar o funcionamento da economia após a quarentena. Assim, é fundamental manter as tarifas de serviços, ou compensar as empresas se forem oferecidos descontos ou impossibilidade de descontinuar o serviço por não pagamento do usuário. As medidas anunciadas de suspensão temporária de pagamento de empréstimos bancários ajudam na estabilização do capital de giro das empresas.

Obviamente os contratos de concessão preveem um equilíbrio econômico financeiro, e a ocorrência deste evento de “força maior” possibilitará um pleito de reequilíbrio. Neste sentido, é memorável que a AGU já tenha emitido parecer confirmando que a situação que vivemos enseja reequilíbrio de concessões, mas a delimitação de qual parcela de frustração de receitas ou de aumento de despesas será aceita não é trivial.

A intensidade da crise e a possibilidade de ocorrer uma segunda onda da pandemia inviabiliza o procedimento tradicional dos reequilíbrios, de os analisar após a conclusão do fato gerador. Talvez precisemos reequilibrar parcialmente dos prejuízos ocorridos neste primeiro semestre de 2020, acelerando os tradicionalmente longos trâmites burocráticos dos reguladores e órgãos de controle. Nesta profunda crise econômica que vivemos – comparável à de 1929 – precisamos de celeridade na decisão dos reequilíbrios, a tempo de manter as empresas solventes.

Um terceiro desafio à infraestrutura é o de adequar os diferentes setores ao “novo normal” após superarmos a pandemia e utilizá-los como propulsores da retomada da economia. Esta crise está sendo tão disruptiva que mudará hábitos das famílias e formas de trabalhar das empresas permanentemente. Por exemplo, com a adoção de home office e reuniões virtuais, a transformação digital está sendo acelerada no país e é provável que, após a pandemia, a demanda por passagens aéreas e mobilidade urbana não retorne ao patamar anterior. As precárias condições de saneamento, por sua vez, aumentam o consenso sobre a necessidade de investimentos efetivos e modernização regulatória.

Um quarto desafio é a retomada de investimentos via setor privado no pós-crise. Os programas de concessões continuam, mas isto só trará investimentos a partir de 2022, dados os prazos envolvidos em leilão e projetos executivos de obras. Sua consecução pode ainda sofrer atrasos pelas incertezas trazidas pela covid-19 e pela recente crise política. Uma das incertezas é quanto ao impacto da crise sanitária sobre a demanda nos próximos anos, especialmente em aeroportos, transportes públicos, geração de energia e óleo & gás.

Outro fator de incerteza advém das condições de financiamento dos projetos nos próximos anos, a perdurarem as incertezas sanitárias e políticas. Ademais, é possível que algumas novas concessões enfrentem a concorrência de ativos existentes em dificuldades, que podem disputar o caixa dos investidores com operações de fusões e aquisições.

Como quinto desafio, a área de infraestrutura é um caminho óbvio para os governos adotarem políticas anticíclicas, para gerarem emprego e renda espalhados pelo país. Nesta perspectiva, os recursos públicos são muito necessários, mas em caráter excepcional e por tempo limitado (2020-21), dadas as restrições fiscais e a ineficiência pública no longo prazo. Lembramos que existe também a possibilidade de se incluir investimentos privados em concessões existentes, mediante reequilíbrio do contrato.

O recém anunciado plano Pró-Brasil, para não cair nos erros do PAC, precisa ter foco e esta visão anticíclica. Ainda, como sugestão, deveria montar um rito rápido e unificado (fast-track) para aprovação dos projetos, envolvendo ministérios, área ambiental, agências reguladoras e tribunal de contas, que possa dar a agilidade que hoje inexiste.

Em suma, a parada súbita da atividade econômica, em prevenção ao forte contágio do coronavírus, traz desafios monumentais à infraestrutura. A crise política agrava os desafios a enfrentar neste longo ano de 2020.