Valor Econômico
18/02/2020

Por Alexander Turra

Veto mostra que atual governo não tem interesse em manter, muito menos ampliar, políticas ambientais sustentáveis

Ao sancionar a Lei nº 13.971, de 27 de dezembro de 2019, que instituiu o Plano Plurianual (PPA) da União para o período de 2020 a 2023, a Presidência da República definiu as prioridades de aplicação de recursos públicos para os próximos quatro anos. Em outras palavras, uma ação não prevista no PPA é entendida como não prioritária e não terá recursos para ser implementada. Portanto, supõe-se que temas importantes para a sociedade devem estar no PPA.

Entretanto, o único veto da Presidência da República ao PPA suprimiu os mecanismos de monitoramento e avaliação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), revelando um descompasso significativo com as aspirações da sociedade. Os ODS correspondem a um conjunto de 17 objetivos e 169 metas a serem atingidas até o ano de 2030. Essa estratégia, denominada Agenda 2030, nasceu na Rio +20 e foi adotada por 193 países na Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2015, com forte protagonismo e endosso do Brasil.

Veto mostra que ao governo não interessa manter, e muito menos ampliar, políticas ambientais sustentáveis.

Os ODS preveem a erradicação da pobreza (ODS 1) e da fome (ODS 2), a busca da boa saúde e bem-estar (ODS 3), educação de qualidade (ODS 4), igualdade de gênero (ODS 5), redução das desigualdades (ODS 10) e cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11). A preocupação com o ambiente está fortemente ligada a esses primeiros objetivos, por meio da garantia de água limpa e saneamento (ODS 6), energia acessível e limpa (ODS 7), conservação da biodiversidade marinha e em águas continentais (ODS 14) e terrestre (ODS 15) e combate às mudanças climáticas (ODS 13).

A agenda 2030 vislumbra esse caminho em associação com emprego digno, crescimento econômico (ODS 8) e apoio à indústria, inovação e infraestrutura (ODS 9) e consumo e produção responsáveis (ODS 12). Pressupõe, ainda, a busca da paz, justiça e instituições fortes (ODS 16) e arranjos de governança baseados em parcerias (ODS 17).

De forma coerente, o Brasil vinha internalizando a Agenda 2030, tornando-a referencial de desenvolvimento em Estados e municípios e na iniciativa privada, cujas ações vêm sendo reconhecidas pelo Prêmio ODS Brasil. Há, inclusive, uma Comissão Nacional para os ODS e uma coordenação de produção de indicadores no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com uma plataforma de dados pronta. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) conduz uma iniciativa de adequação dos indicadores para a realidade nacional e agências de fomento inseriram a contribuição para os ODS como parte de seus editais de pesquisa.

Isso demonstra que esforços e recursos já foram investidos na estruturação de um mecanismo de monitoramento e avaliação dos ODS, o qual está sendo desidratado pelo PPA aprovado pelo Executivo.

Os ODS têm sido considerados internacionalmente como balizadores de políticas públicas, tanto no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e como na Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). A Segunda Avaliação Global dos Oceanos, que será lançada em 2020 pela Organização das Nações Unidas, tem nos ODS um referencial objetivo para compreender os avanços obtidos e os desafios que ainda restam para a sustentabilidade dos oceanos.

Assim como outros acordos internacionais, os objetivos e as metas da Agenda 2030 são relevantes, mas não impositivos. Eles orientam os países na elaboração de ações coerentes com o que foi acordado internacionalmente, considerando suas potencialidades e limitações. Entretanto, o veto foi justificado pelo entendimento de que a inclusão no PPA daria “um grau de cogência e obrigatoriedade jurídica, em detrimento ao procedimento dualista de internalização de atos internacionais”, segundo despacho proferido pela Presidência.

Esse argumento é controverso pois o Brasil tem endossado e internalizado inúmeros acordos internacionais que pressupõem compromissos e obrigações. Como exemplo, o Tratado Antártico, promulgado em 1959, foi ratificado pelo Brasil em 1975. O Programa Antártico Brasileiro (Proantar), inserido nesse tratado, é entendido como uma prioridade brasileira, com previsão de ações no PPA que permitiram, inclusive, a reconstrução da Estação Antártica Comandante Ferraz, reinaugurada em janeiro de 2020. Destaca-se que esse tratado é altamente restritivo e limita toda e qualquer exploração de recursos minerais e biológicos na Antártica.

Mesmo com interesses na região, materializados pela reivindicação informal de um território em 1986, o Brasil reconhece o tratado e por ele vinha zelando. Portanto, não há elementos concretos que indiquem que a Agenda 2030 poderia comprometer a autodeterminação do Brasil a ponto de motivar esse veto.

Como não há dúvida de que os ODS são relevantes e coerentes na busca da dignidade humana com sustentabilidade, algo que qualquer governo deveria priorizar. O veto representa mais uma negação dos princípios da Agenda 2030 e um desinteresse na implementação do seu conteúdo, do que uma aparente preocupação com a soberania do Brasil.

Incluir mecanismos de monitoramento e avaliação da Agenda 2030 no PPA significa compreender a importância dos seus objetivos e metas e, explicitamente, criar as condições para implementá-las. Mais que isso, é necessário compreender e considerar outras consequências dessa atitude, como o comprometimento da entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que exige o cumprimento de acordos internacionais na área ambiental.

A retirada dos mecanismos de monitoramento e avaliação dos ODS do PPA expressa uma mensagem clara. Não destinar nada para essas ações dos cerca de R$ 6,8 trilhões, previstos para o PPA nos próximos quatro anos, indica que o atual governo não tem interesse em manter, muito menos ampliar, políticas ambientais sustentáveis. Em outras palavras, esse veto revela o país que o atual governo pretende (des)construir, eximindo-se de uma agenda de mobilização internacional centrada na melhoria das condições de vida em harmonia com a proteção ambiental e a justiça social. Mas, o governo não percebe que, em primeiro lugar, deve dar satisfação a nós, brasileiros, sobre temas tão importantes e urgentes para o país.

Resta-nos recorrer à lucidez do Congresso para derrubar esse veto e garantir os compromissos com as aspirações do povo brasileiro de dignidade, equidade social e qualidade ambiental, importantes bases para um país exercer sua autodeterminação e soberania.

*O artigo é subscrito pela Coalizão Ciência e Sociedade que reúne 72 cientistas de instituições de pesquisa de todas as regiões brasileiras.

Alexander Turra é professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pela Cátedra Unesco para Sustentabilidade dos Oceanos.