Folha de São Paulo
06/03/2020

Por Anaïs Fernandes

Mercado de capitais supre boa parte da lacuna, mas alguns analistas veem retração prematura do banco

om a desaceleração dos investimentos em 2019 e a percepção de que empresas não têm recorrido em peso a crédito bancário, ganha força a discussão sobre o impacto na retomada da economia do encolhimento dos bancos públicos, em especial do BNDES. O mercado de capitais tem dado sinais de que é capaz de suprir, ao menos em parte, essa lacuna. Para alguns analistas, o ritmo aquém do esperado na demanda por financiamento e nos investimentos teria mais relação com o cenário de incertezas dentro e fora do país e com a falta de bons projetos. Outros economistas, porém, questionam o timing de enxugamento dos bancos estatais, sem que isso tenha sido acompanhado de maior concorrência no sistema bancário e em um momento em que o país precisa atrair capital para dar fôlego à recuperação.

A captação das companhias não financeiras com desembolsos do BNDES e emissão primária de dívida e ações soma R$ 341,2 bilhões em 12 meses até outubro de 2019, segundo levantamento do Centro de Estudos do Mercado de Capitais (Cemec-Fipe) para o Valor. O volume é 5,6% superior ao pico de R$ 323,1 bilhões de 2014, observa Carlos Rocca, coordenador do Cemec.

A composição desse financiamento, porém, é bem distinta. Em 2014, os desembolsos do BNDES participavam com R$ 187,8 bilhões, e as emissões a mercado, com R$ 135,3 bilhões. Até outubro do ano passado, os desembolsos do BNDES recuaram para R$ 62,1 bilhões, enquanto emissões de dívida e ações somavam R$ 279,1 bilhões.

Rocca destaca que o avanço no financiamento corporativo total entre 2014 e 2019 contrasta com uma queda de 3,7% na formação bruta de capital fixo, medida do que se investe em máquinas e equipamentos, construção civil e inovação. “Em termos de volume, não há indicação de que o total de recursos de longo prazo em 2019 tenha representado fator limitante para o investimento”, diz ele.

Em 12 meses até setembro de 2019, as consultas ao BNDES caíram, em termos reais, 44,5%, segundo o último boletim da instituição, para R$ 60,4 bilhões, ante R$ 108,7 bilhões até setembro de 2018. As aprovações avançaram apenas 0,7%, para R$ 78,7 bilhões, mas os desembolsos recuaram 4,4%, a R$ 64,7 bilhões.

“Não é que não haja recursos disponíveis, o banco opera normalmente, mas há problema de demanda em relação aos instrumentos dele”, diz Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro Nacional, ex-diretor do BNDES, atualmente diretor do ASA Bank.

Kawall diz que indicadores sugerem “dinamismo muito forte” do mercado de capitais e que ele “tem ocupado, em boa medida, o espaço antes suprido pelo BNDES”. Na sua avaliação, o avanço bastante moderado da economia não parece ter relação com a subtração de papel do banco, e a queda nas consultas ao BNDES indica mais sua perda de competitividade do que uma ausência mais ampla de apetite por crédito. “Por que empresas querem emitir papéis, por que haveria tanta procura por esse instrumento se não houvesse necessidade?”, questiona ele.

Segundo Kawall, no caso do BNDES, há ainda uma adequação da demanda à economia real. “Muitas empresas aproveitavam a oferta subsidiada de recursos do banco para fazer arbitragem de juros e obter ganhos financeiros no diferencial entre as taxas do BNDES e as do mercado. Havia um crescimento da alavancagem das empresas excessivo frente ao crescimento econômico que esse crédito estava produzindo.”

Em meio à política de “campeões nacionais” da era petista, o BNDES cresceu de forma acelerada – em 2013, os desembolsos atingiram R$ 190 bilhões. A proposta de um banco mais enxuto, menos dependente do Tesouro Nacional para taxas subsidiadas, já existia com o expresidente Michel Temer, mas intensificou-se com Jair Bolsonaro, já que o governo disse querer desembolso anual de R$ 70 bilhões e atuação prioritária em financiamento a Estados e municípios, saneamento e privatizações.

“O efeito líquido é positivo. Quando havia muito crédito direcionado, financiamos coisas com produtividade zero. O recurso agora será direcionado para onde tem de ir”, afirma Simão Silber, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), Manoel Pires concorda que o modelo em vigor até 2014, de favorecimento às operações de bancos públicos, “parecia pouco sustentável” e que rever processos era importante. Na sua opinião, porém, tem havido “excessos”.

“O BNDES deve fechar o ano com desembolsos em torno de R$ 60 bilhões. Em percentual do PIB, é o mesmo que emprestava no começo dos anos 1990. Tem uma desalavancagem excessiva, particularmente do BNDES”, afirma ele. No caso da Caixa Econômica Federal, ele diz ver sinais de que o banco busca manter algum protagonismo, com lançamento de novos produtos imobiliários.

Por trás da decisão de enxugar bancos públicos existe a visão de que o mercado de capitais será substituto desses financiamentos, “mas essa transição de modelo tem pontos de interrogação”, diz Pires. “De cara, é possível afirmar que o mercado tem dificuldade de atender empresas de médio e pequeno porte”, afirma ele. “Aí temos um gargalo.”

Também em relação a prazos, outro atrativo do BNDES nos anos anteriores, a captação via mercado apresenta limitações. Em 2014, os desembolsos do BNDES, sem considerar operações automáticas, para 15 anos ou mais representavam 15% dos desembolsos totais do banco, segundo o Cemec. Em 2019, a emissão de debêntures – que representam cerca de 60% da dívida corporativa – com esse prazo não superava 3% do total. “Fica claro que, para prazos muito longos, o mercado ainda não oferece um volume suficiente para atender a essa demanda”, diz Rocca.

Ele pondera, no entanto, que há tendência de alongamento. Em 2014, emissões de debêntures acima de sete anos representavam 21% do total, fatia que subiu para 35% nos 12 meses até novembro de 2019. Condições macroeconômicas estáveis, com juros baixos, podem contribuir para o movimento. “De todo o modo, o que podemos ter é o BNDES entrando nessa parte”, diz Rocca, em referência aos prazos longos e ao crédito a pequenas e médias companhias.

Além de chegarem a áreas em que o setor privado tem mais dificuldade, os bancos públicos também atuam como estímulo à concorrência, diz Pires. Por isso, o enxugamento dos bancos estatais gerou aumento de poder de mercado das entidades privadas, com manutenção de altos “spreads” apesar de as taxas de juros e o custo do financiamento terem caído, avalia ele.

“Nessa situação de oligopólio, com grande concentração bancária, tirar um ‘player’ importante do sistema, é um baita erro”, afirma Luiz Carlos Mendonça de Barros, presidente do BNDES entre 1995 e 1998. Ele diz que Banco do Brasil e a Caixa têm funções importantes, mas são menos direcionados ao longo prazo. “Eles não substituem a parte perdida do BNDES.”

Mendonça de Barros destaca que, nos 12 meses até janeiro, o estoque de crédito para pessoas físicas cresce 12,2%, para R$ 2,035 trilhões, enquanto para as pessoas jurídicas avança 0,4%, para R$ 1,428 trilhão, segundo o Banco Central. Para ele, há um “efeito BNDES” nesse resultado. Pelos dados do BC, o estoque de crédito com recursos do BNDES, que encerrou janeiro em R$ 380,47 bilhões, registra queda de 12,5% em 12 meses. “Estão tirando o BNDES num momento em que a oferta de crédito de longo prazo é crucial para a volta do investimento.”

Kawall reconhece que, como a atividade está “morna”, os números do BNDES e do mercado de capitais dizem respeito, em boa medida, a mudanças de passivo, “de redução ou troca por instrumentos mais baratos”. Dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) mostram, por exemplo, que 35% das debêntures emitidas em 2019 tinham o objetivo de refinanciamento.

A melhora no custo da dívida e no custo de capital próprio das companhias são fatores que contribuem parar “liberar espaço” para os investimentos, diz Rocca. “Outro componente é a expectativa de crescimento da demanda e, no agregado, de crescimento do PIB. O nosso modelo, que considera uma média para os próximos três anos, estava em queda até o fim de 2019, só parou de cair agora. Esse é um fator favorável, mas resta a incerteza e a confiança, que têm potencial inibidor”, diz.