Estadão
22/11/2019

Por Rubens Naves e Guilherme Amorim Campos da Silva*

Formular uma retrospectiva sobre os principais acontecimentos no campo do direito público em 2019 deixa de ser tarefa trivial, tamanha a quantidade e complexidade de temas que enfrenta a sociedade brasileira. Abordamos a tarefa considerando três eixos fundamentais na relação do indivíduo com o Estado.

O primeiro eixo identifica os avanços e retrocessos no campo dos direitos e garantias individuais e coletivos. Com uma agenda conservadora, o Poder Executivo força os demais poderes a debaterem temas como a extinção dos Conselhos de representação popular, identificados com uma pauta progressista. Apesar de sua previsão constitucional, sofrem interferência do Poder Executivo e obrigam manifestação do Supremo Tribunal Federal com vistas ao restabelecimento de seu funcionamento. Enquanto isto, projetos de lei tramitam no Congresso Nacional com o intuito de restringir a participação popular em Conselhos que constituem importante instrumento de participação na formulação e fiscalização na execução de políticas públicas de interesse de toda a sociedade em diversos segmentos, desde saúde pública ate currículo escolar.

Ao lado destas iniciativas, há importantes debates que acendem luzes sobre pontos críticos de restrição de direitos: interferências em autonomias universitárias, alterações legislativas que constituem retrocessos em conquistas da cidadania e, até mesmo, a volta ou a normalização de situações odiosas de discriminações sexistas ou em função de posição econômica ou social, ou, ainda, em temas como escola sem partido, questões de gênero, saúde da mulher, terapias alternativas etc.

O segundo eixo diz respeito à governança estatal e à busca do equilíbrio fiscal. Desde o governo Michel Temer está em curso a tentativa de aprovação de uma reforma da Previdência, com impacto no orçamento geral da União, Estados e municípios, com reflexos em pontos importantes de matéria tributária que ainda estão por merecer aprofundamento nas discussões entre Executivo e Legislativo na perspectiva republicana, com temas como imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII, CF), por exemplo.

Esta discussão, longe de ser ideológica, remete ao pacto republicano contido em nossa Carta de 1988, em que exortações por uma nova constituinte só tumultuam. O projeto de lei de plano plurianual apresentado pelo governo para o período de 2020 a 2023, exigência constitucional de planejamento, está sendo criticado por parlamentares que integram a Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional, conforme noticiou o Estadão em 21 de outubro (Economia, B3), por justamente deixar de traçar prioridades para o período e estabelecer metas e prazos. Segundo a Comissão, a proposta tem inconsistências, omite prazos e, em alguns casos, fixa metas que não indicam se o objetivo do programa será atingido ou não. É importante ressaltar que a Constituição Federal estabelece que o dever de planejar a atividade estatal é obrigatória para o Estado brasileiro, tendo em vista a transparência dos atos e o seu controle por todos os cidadãos.

O terceiro eixo, igualmente importante, identifica um conjunto relevante de normas relativas ao denominado ambiente econômico de investimento e relacionamento com o Poder Público. Englobam-se aqui as leis de parceria público privadas, lei de licitações, lei de introdução às normas do direito brasileiro, o marco regulatório das organizações da sociedade civil, o marco legal do saneamento, a lei da improbidade administrativa, lei de abuso de autoridades, dentre outras.

Hoje, as relações com o Poder Público são permeadas por um clima de insegurança jurídica, o que é um complicador importante no momento de se estabelecer compromissos, tanto em nome dele ou com ele.

Em primeiro lugar, há um clima de desconfiança em todas as relações: logo, todo mundo é desonesto, corrupto. Se o sujeito ocupa um cargo público, é porque é desonesto. Se a empresa quer contratar com o Poder Público, é porque quer levar uma vantagem ilegal. O que fizemos? Inúmeras iniciativas de lei que tramitam no Congresso Nacional tendem a piorar este cenário e introduzir uma cultura de desconfiança. Se erros acontecem e acontecerem, as responsabilizações devem vir a posterior, e não antes, como parece ser a tendência hoje.

Isto dito, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, recentemente em vigor no nosso ordenamento, traz um conjunto normativo importante para analisarmos as atuais propostas de mudança em curso no Congresso neste cenário que denominamos de ambiente econômico: a boa-fé na contratação com o Poder Público constitui premissa que deve estar presente em toda a produção legislativa.

A Lei das Parcerias Público Privadas, de 2004, tem atraído investimentos modestos em concessões sempre investigadas e, neste instante, há propostas tramitando no Congresso alterando as formas de remuneração no setor de infraestrutura, o que causa insegurança tanto jurídica como econômica no ambiente de negócios.

Outrossim, a lei de licitações, em vigor desde 1993, e que vem sofrendo emendas e remendos, notadamente com o malfadado regime diferenciado de contratações, um fast track que o Congresso aprovou anos atrás para agilizar algumas contratações em tempo de permitir as grandes obras da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada do Rio, de 2016, está há anos com projetos e anteprojetos em tramitação no Congresso Nacional. Atualmente, um projeto está para ser votado na Câmara dos Deputados e consolida alguns avanços como a inversão de fases, a negociação direta de preços; mas, ainda, peca por privilegiar em algumas contratações o menor preço ao invés da inteligência ou da melhor técnica.

Há um aspecto no debate do combate à corrupção que significa avanços: a aprovação da Lei 13 869/19 que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade aprovada no calor dos

Há um aspecto no debate do combate à corrupção que significa avanços: a aprovação da Lei 13.869/19, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, aprovada no calor dos excessos cometidos tanto por agentes do Ministério Público, como do Poder Judiciário e mesmo das forças policiais, responsabilizando os agentes que cometem arbitrariedades.

Cite-se, ainda, o projeto de lei denominado anticrime (PL 881/2019), que vem sofrendo fortes rejeições por conter pontos polêmicos como a ampliação da possibilidade de policiais alegarem legítima defesa em situações de confronto e que, até a data deste artigo, já havia sofrido mais de vinte cortes.

Finalmente, como um último retrospecto e importante advertência há a questão do saneamento que constitui, ao mesmo tempo, excelente oportunidade de avançarmos em muitos dos aspectos acima mencionados.

A discussão que tramita no Congresso Nacional em torno do projeto de lei do Marco Legal do Saneamento Básico tem atraído atenção de todos os atores do setor: iniciativa privada, estatais, os titulares municipais, consórcios públicos que exploram o serviço em prol de um interesse regional, Estados e a União.

Há pontos positivos e críticos na discussão do Marco Legal do Saneamento e todos eles reportam ao pacto republicano. O Supremo Tribunal já adiantou em julgamento ainda em curso na ADI 1842, critérios que podem auxiliar na versão final deste projeto de lei em curso: a definição do interesse comum metropolitano obriga a um planejamento de médio e longo prazo para fins de estabilidade de planejamento devendo ser assegurada a participação ativa dos municípios em seu planejamento e execução.

Falta criatividade na identificação de recursos que possam subsidiar os investimentos, quer sejam públicos ou privados.

A Constituição impõe um consenso na definição das atribuições de cada ente federativo no planejamento e execução das políticas de saneamento. Essa é uma premissa inafastável.

O ano de 2019 termina com uma pauta repleta de desafios no âmbito do relacionamento dos poderes constituídos da República, convocando a cidadania para o exercício democrático da participação crítica e construtiva.

*Rubens Naves, professor aposentado de Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito da PUC/SP, conselheiro e fundador da Transparência Brasil. Sócio de Rubens Naves Santos Jr. Advogados

*Guilherme Amorim Campos da Silva, diretor do Programa de Mestrado em Direito da Uninove. Doutor em Direito do Estado e Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Sócio de Rubens Naves, Santos Jr. Advogados