Marco do saneamento não ameaça Corsan, afirma Senna

Jornal do Comércio
26/07/2020

Por Marcus Meneghetti e Patrícia Comunello

O presidente da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), Luiz Afonso Senna, é um entusiasta do novo Marco Legal do Saneamento Básico, aprovado no Congresso Nacional no final de junho.

Embora celebre a nova legislação – que facilita a concessão de serviços de água e esgoto à iniciativa privada e autoriza a privatização de estatais desse setor -, Senna acredita que a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) não corre risco. Ao contrário, aposta que vai continuar sendo a principal empresa do ramo no Rio Grande do Sul.

“A Corsan tem um histórico absolutamente qualificado. E creio que, com o lançamento do IPO da companhia (oferta pública inicial de ações, na sigla em inglês), se qualificará ainda mais”, ponderou.

Empossado na presidência da Agergs neste mês, para comandar a agência até 2021, Senna acredita que o Estado lançará em breve uma nova licitação para o transporte de passageiros intermunicipal e nas regiões metropolitanas. Afinal, a falta de contratos claros para a prestação de serviço nesse setor dificulta, inclusive, a ajuda financeira às empresas – bastante prejudicadas pela pandemia de Covid-19.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele explica ainda como será a participação da Agergs no regramento das rodovias estaduais que serão concedidas à iniciativa privada. Entre outras funções, a agência vai regular os preços e garantir a manutenção das vias.

Jornal do Comércio – As agências nacionais de regulação, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), são relativamente conhecidas, mas muitas pessoas não sabem exatamente qual é a função da Agergs. Como ela está presente na vida dos gaúchos?

Luiz Afonso Senna – A Agergs é uma agência multissetorial, ao contrário do que acontece no governo federal, que possui agências setoriais para regular os transportes terrestres, o transporte aquaviário, a aviação civil, a energia elétrica, as telecomunicações, o petróleo e assim por diante. A Agergs faz a regulação de vários setores simultaneamente. Então, está presente na vida das pessoas porque participa da regulação de praticamente todas as infraestruturas no Estado. Por exemplo, regula o sistema de transporte de passageiros nas regiões metropolitanas do Rio Grande do Sul, seja a Região Metropolitana de Porto Alegre, da Serra Gaúcha e outras. Também regula o sistema de travessias hidroviárias, o transporte intermunicipal de passageiros. Atua ainda no sistema de saneamento básico, tanto nos municípios que têm contrato com a Corsan quanto no caso de Uruguaiana, onde uma empresa privada presta os serviços de água e esgoto. Nesse setor, os municípios fazem um convênio com a Agergs para a regulação do trabalho prestado pelas companhias de saneamento e água. Além disso, a agência gaúcha tem um convênio com a Aneel, para fiscalizar o serviço prestado pelas companhias de energia elétrica no Estado. Esses são alguns exemplos de como a Agergs está presente na vida dos gaúchos.

JC – No final de junho, o Congresso Nacional aprovou o novo Marco Legal do Saneamento Básico. O senhor escreveu um artigo sobre isso, no qual classifica o novo marco como um “salto civilizatório para o Brasil”.

Senna – No Brasil, estamos correndo o risco de ter uma situação absurdamente paradoxal: termos crianças jogando um joguinho em um telefone 5G, com os pés dentro do esgoto em uma vila ou favela. O “salto civilizatório” significa que a criança vai estar no (smatphone) 5G, mas calçando um sapatinho, e o esgoto vai estar enterrado. Os países civilizados fizeram isso no final do século XIX. Com o novo marco do saneamento básico, vamos ter um regramento inteligente, que usa as regras do mercado para fomentar investimentos em abundância na construção de redes de esgoto, estações de tratamento de água, entre outras coisas.

JC – O novo marco legal facilita a contratualização do serviço de saneamento com empresas privadas. Aqui entram as agências reguladoras…

Senna – As agências têm um papel fundamental nisso. Imagine que uma empresa privada ganhou uma licitação e passou a prestar o serviço de saneamento. Depois que ela assina o contrato, começa a exercer o que a gente chama na economia de “market power”. Ou seja, pensa que é dona do monopólio e vai fazer o que quiser. O papel da agência reguladora é ir lá e fazer a empresa privada cumprir rigorosamente o que está especificado no contrato, fiscalizar os indicadores de qualidade, de performance e assim por diante.

JC – Acredita que a contratação de empresas privadas para cuidar do saneamento será uma tendência entre os municípios gaúchos?

Senna – Não. A Corsan tem um histórico absolutamente qualificado. E creio que, com o lançamento do IPO da companhia (oferta pública inicial de ações, na sigla em inglês), se qualificará ainda mais. Pode ser que, em um primeiro momento, haja alguma modificação. Até porque a infraestrutura é um setor de capital intensivo. Tem uma coisa que se chama “sand costs”, que são os custos enterrados. Significa que depois que se coloca o dinheiro ali, não se pode botar nas costas os canos do saneamento e levar para outro lugar. Então, esse compromisso é de longo prazo. Alguns artifícios das empresas que trabalham em redes é o chamado “subsídio cruzado interno”. Em algum lugar, tenho uma atividade em que ganho muito dinheiro, e uso parte desse dinheiro para bancar alguns custos de setores menores. Por exemplo, (o saneamento de) uma cidade menor será bancado pelo de uma cidade maior (onde o lucro é maior). As empresas que só vão operar uma ou duas cidades talvez tenham um custo fixo muito alto. O custo fixo de uma empresa como a Corsan já está diluído. Ela tem algumas nuances econômicas que me fazem crer que continuará sendo o maior player aqui no Estado.

JC – Uma das críticas ao novo Marco Legal do Saneamento diz respeito ao preço: os opositores ao projeto temem um aumento da tarifa de água, por exemplo, porque as empresas privadas embutiriam sua margem de lucro na tarifa, enquanto as empresas estatais não fariam isso justamente por não terem o lucro como finalidade. Como avalia essa crítica?

Senna – É uma bobagem astronômica. Qualquer empresa visa ao lucro. O que se pode discutir é o que fazer com ele. Em uma empresa privada, se incorpora ao acervo financeiro dos seus donos. As estatais deveriam buscar o lucro para poderem reinvestir, assim como o privado também faz. Então, essa discussão é muito ultrapassada. Dizem que a empresa estatal é uma coisa, e a privada, outra. Na realidade, são a mesma coisa. Não interessa se é uma empresa pública ou privada. O que interessa é que tem que funcionar bem. As tarifas não podem ter um preço político, mas um preço justo, que reflita o conjunto de investimentos e remunere adequadamente os concessionários. Aí, entra a função da agência reguladora de manter o contrato que foi pactuado no início da parceria, quando foram definidas as obrigações, deveres e direitos de todos os entes, principalmente dos concessionários.

JC – Uma das funções da Agergs é garantir que o contrato das concessões seja cumprido ao longo do tempo…

Senna – A concessão de uma rodovia, de saneamento ou de energia dura 30 anos normalmente. Em 30 anos, passam sete governos. Sete governos podem percorrer praticamente todo o espectro ideológico. Mas, independentemente da orientação política do governo, a empresa tem uma missão a cumprir, um conjunto de investimentos. Se ela estiver cumprindo, ótimo. Se não, as penalidades estão previstas no contrato. Então, em um Estado de Direito, as agências devem trabalhar para que se cumpra na plenitude as obrigações e deveres especificados no contrato. Independentemente se ela é uma empresa estatal ou privada.

JC – No caso no saneamento, o fato de o serviço ser prestado por uma estatal ou privada não interfere no preço da tarifa?

Senna – Absolutamente, não. Por quê? Porque tem um fluxo de caixa, uma série de investimentos, a tarifa que remunera esses investimentos, obviamente remunera o capital… É complexa essa equação. Mas não interessa quem faz a gestão disso aí, se é uma empresa pública ou privada. Tudo tem que estar dentro de uma equação econômico-financeira. Não existe doação. Empresa privada não doa, nem a estatal.

JC – O governo do Estado pretende conceder à iniciativa privada um bloco grande de rodovias estaduais. E há a questão do pedágio, que é um ponto importante para o consumidor, além de frequentemente ser objeto de polêmica. Como a Agergs vai atuar nesse processo de concessões?

Senna – O que a Agergs vai fazer? Todos os reajustes, que normalmente são anuais, são revisados (pelo poder fiscalizador) a cada quatro anos, para ver o que mudou em termos de tecnologia no mundo, verificar a qualidade (do serviço prestado), fiscalizar as rodovias… Por exemplo, vamos pegar o caso da freeway mais a (RSC) 386, rodovias federais que estão com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Se tiver um buraco no pavimento, causado pela chuva ou por outro problema qualquer, a empresa concessionária tem um tempo para fechar o que a gente chama de “panela”. Se a concessionária não fechar no tempo determinado pelo contrato, pode ser multada ou sofrer outras sanções. A Agergs vai ter o mesmo posicionamento. Vai fiscalizar o que acontece nas rodovias que vão ser concedidas, assim como vai ser o ente de acompanhamento das questões de tarifa, reajuste etc.

JC – Hoje, temos muitas rodovias em estado precário, com buracos, no Rio Grande do Sul. Qual o papel da Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR) nesse cenário?

Senna – Hoje a Agergs não é reguladora de nenhuma rodovia. A gente teve o problema criado nos anos 1990, que são os polos rodoviários. Eles terminaram em 2013 ou 2014. Agora é que o Estado está organizando novas concessões. Temos duas rodovias federais no Estado que foram concedidas, a freeway e a 386, que estão sob a responsabilidade da ANTT. Na Metade Sul, temos a (concessionária) Ecosul, na BR-116, que é regulada também pela ANTT. Quanto à EGR, ela não tem regulador, porque é uma estatal. Ela tem um probleminha, que é a falta de capacidade de investimento. Ela não consegue investir primeiro, para depois cobrar – que é a lógica de uma concessão. De qualquer forma, o Estado estuda conceder à iniciativa privada o conjunto de rodovias da EGR. Aí, sim, a Agergs seria a reguladora.

JC – O setor de transportes é um dos mais afetados pela pandemia, com novos protocolos de seguranças e até limitação no número de passageiros no transporte intermunicipal…

Senna – O transporte de passageiros, tanto o intermunicipal quanto o das regiões metropolitanas, está na iminência de uma nova licitação, para definir os parâmetros de operação do sistema. Hoje, quase a totalidade das linhas funciona em caráter precário (do ponto de vista, jurídico), através de autorizações e permissões, não necessariamente concessões. Agora, durante a pandemia, quando as empresas passaram a ter problemas muito sérios, fica muito difícil até para o governo dar algum socorro às empresas, na medida que não existe um contrato que respalde (a prestação do serviço) e que permita uma compensação depois da pandemia. Isso gera uma série de incertezas. Então, a expectativa é de que o governo lance novas licitações.

JC – Tem também a questão da queda da demanda…

Senna – Essa é uma questão que certamente deve estar na pauta de prioridade, tanto do governo quanto das empresas. E também da Agergs. A gente precisa montar um arranjo que seja sustentável e que dê tranquilidade para as empresas operarem com um determinado nível de qualidade ao mesmo tempo que as tarifas sejam compatíveis.

JC – Há prazo para o lançamento dessas novas concessões?

Senna – Pelo que temos sido informados na Agergs, a expectativa é de que seja lançado o mais breve possível. Quanto ao prazo, quem tem essa informação é o poder concedente, no caso, o Estado.

PerfilL

Luiz Afonso dos Santos Senna tem 63 anos e é natural de Porto Alegre. Graduou-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 1980. Entre 1984 e 1988, concluiu o mestrado em Engenharia de Transportes, pelo Programa de Engenharia de Transportes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1989, iniciou o curso de PhD pelo Institute of Transport Studies, da University of Leeds, no Reino Unido. Concluiu o PhD em 1994. Concluiu o pós-doutorado pela University of Oxford em 2004, tendo sido professor visitante do Transport Studies Unit e do Centre for Brazilian Studies da instituição. Possui formação executiva pela Kennedy School of Government, da Harvard University. É professor titular da Ufrgs desde 1989. Foi professor visitante da Grenoble Graduate School of Business, na França. No setor público, foi diretor na primeira gestão da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), entre 2002 e 2004. Entre 2005 e 2010, na gestão do ex-prefeito de Porto Alegre José Fogaça (MDB), acumulou os cargos de secretário municipal de Transportes e diretor-presidente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). 

 

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