Rubens Naves* – Estadão

22 de maio de 2019 | 09h00

Há cerca de 40 anos, a palavra ‘privatização’ foi lançada no mercado global das ideias – e mais especificamente no departamento das propostas políticas – como solução para o desafio de prover serviços públicos com crescente abrangência e qualidade sem sobrecarregar economicamente os contribuintes.

A novidade, que tinha como grande promotora a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, consistia em identificar na busca incessante do lucro, que caracteriza a iniciativa privada, o motor mais potente para atender a necessidades sociais tradicionalmente supridas pelo setor público.

Ao Estado caberia apenas o papel de regulador da ‘ganância produtiva’ do setor privado, que passaria, assim, a servir aos mesmos objetivos de universalização de serviços básicos, amplo desenvolvimento social e democratização de oportunidades que devem mover o poder público. A sociedade só teria a ganhar, tanto com a redução dos custos quanto com a melhoria dos serviços.

Seguindo essa receita, em 1989 a Inglaterra foi o primeiro país a privatizar todo o setor de saneamento básico. Passadas três décadas, a experiência inglesa revela graves problemas de modelos de privatização radical, especialmente quando aplicados a setores nos quais os monopólios se impõem de modo praticamente inevitável, como o do saneamento.

O cenário atual do que os ingleses chamam de ‘indústria da água’ exibe amplo e contínuo descumprimento de metas de aumento de eficiência e redução de desperdício, trajetória ambiental insustentável, enormes lucros para altos executivos e grandes acionistas e tarifas pagas pelo cidadão comum reajustadas cerca de 40% acima da inflação em relação aos preços cobrados desde a privatização.

Diante desse quadro, segundo pesquisas de opinião realizadas nos últimos anos, a maioria dos ingleses vem se posicionando a favor da “renacionalização” ou reestatização dos serviços de saneamento básico.

A experiência inglesa não é a única a fornecer evidências de que privatizar não é sinônimo de atender melhor às necessidades sociais em relação ao saneamento básico.

Ao longo das últimas décadas, diversas experiências internacionais demonstram que a privatização – que a curto prazo oferece discurso político persuasivo, fonte de recursos para a gestão pública e boas oportunidades de negócios para empresas e investidores – frequentemente se torna, a médio e longo prazos, prejudicial para a maior parte da sociedade.

Constatação que chegou a inspirar a criação de um site na internet, o remunicipalisation.org, dedicado ao registro de casos de municípios de várias partes do globo que, depois de privatizar esses serviços, voltaram a estatizá-los.

Saneamento básico é uma das áreas nas quais o Brasil se encontra em estágio mais atrasado de desenvolvimento. Hoje, 27% da população brasileira não conta com abastecimento de água tratada, 48% não tem coleta de esgoto e 54% do esgoto coletado não é tratado.

Um quadro vergonhoso, com graves impactos sobre a mortalidade infantil, a saúde, a qualidade de vida, a cultura e o senso de cidadania, as oportunidades de desenvolvimento e ascensão de famílias e indivíduos, e a sustentabilidade socioambiental. E, no caso brasileiro, esse enorme déficit de saneamento básico não é culpa da privatização, já que apenas 6% dos serviços do setor no país são prestados por empresas privadas.

Diante dessas evidências, duas constatações simples e fundamentais se impõem.

A primeira: o Brasil precisa tratar a necessidade de expansão acelerada do saneamento básico como uma prioridade nacional urgente e enfrentá-la com o espírito de mudança e inovação que o tamanho do desafio exige. A segunda: na busca dos meios mais eficientes e eficazes para superar esse desafio devemos evitar a reprodução de modelos que já se revelaram falhos mundo afora.

Entre as características que costumam marcar mentalidades e culturas políticas pouco vocacionadas para promover desenvolvimento socioeconômico vigoroso e sustentável está a falta de capacidade ou disposição para aprender com a experiência.

O subdesenvolvimento frequentemente se reproduz por meio da sucessão de ‘soluções novas’, processo no qual, a cada ciclo, ignora-se o que já feito e jogam-se fora os bebês junto com a água do banho – ou, nas palavras de um poeta da nossa música popular, ‘tudo parece que era ainda construção e já é ruína’.

Em se tratando de saneamento básico, o Brasil tem experiências que merecem ser valorizadas, compreendidas e aperfeiçoadas. No âmbito dos modelos institucionais, a mais importante dessas experiências tem sido protagonizada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo.

No cenário nacional, São Paulo é, de longe, o Estado mais avançado no que concerne ao saneamento, com 96% da população recebendo água tratada, 90% com coleta de esgoto e 65% do esgoto tratado.

Liderança que não se explica apenas pelo fato de se tratar do estado mais rico da federação (uma vez que, desse mesmo fator econômico, não decorre automaticamente o primeiro lugar do ranking nacional em relação a outros serviços públicos).

Essa posição de São Paulo, tão à frente da média brasileira no campo do saneamento básico, se deve, em larga medida, a qualidades importantes do modelo da Sabesp, da cultura e das práticas da empresa.

Responsável pelo atendimento de 63% da população do estado e por cerca de 30% do investimento em saneamento feito hoje no Brasil, a Sabesp, empresa de economia mista cujo maior acionista é o governo paulista, dá exemplo de parceria bem-sucedida entre os setores público e privado. Não se trata de um modelo institucional intocável a ser engessado mas, sim, aperfeiçoado com o cuidado devido em relação a experiências essencialmente exitosas.

Neste momento em que o Congresso Nacional avança nas negociações em torno da Medida Provisória 868, de 2018, que propõe um novo marco regulatório federal para o saneamento básico, devemos levar em conta as evidências de que tanto os excessos estatizantes quando os privatistas podem nos desviar da construção das soluções que melhor servirão ao bem comum, de modo consistente e sustentável.

* Rubens Naves é advogado, autor do livro Água, Crise e Conflito em São Paulo (Ed. Via impressa 2015)