Por Leonardo Paixão – Valor Econômico

18/02/2019 – 05:00

No momento em que se discute uma ampla agenda de privatizações para tornar o Estado mais eficiente e reequilibrar a situação fiscal do país, é fundamental fazer o que tem que ser feito sem “deixar dinheiro na mesa”, como se diz no jargão do mercado.

Para identificar o que privatizar, a Constituição brasileira é o guia. Serviços públicos competem ao Estado (art. 175). Atividades econômicas são, em princípio, reservadas à iniciativa privada (art. 173), mas se forem estratégicas podem ser exercidas pelo poder público, por intermédio das empresas estatais.

Como a Constituição usa termos abertos para autorizar o Estado a exercer atividade econômica (“imperativos da segurança nacional” e “relevante interesse coletivo”), cabe a governos e parlamentos eleitos pelo voto popular determinar, em cada momento histórico, quais atividades cabem nessas expressões.

Por se tratar de escolha política, é natural que haja mudanças de entendimento conforme a sociedade evolui. Atividades econômicas que inicialmente eram consideradas estratégicas podem deixar de ser, tempos depois. No Brasil, telefonia e distribuição de energia elétrica, por exemplo, já passaram por isso.

Privatização, portanto, é a resposta à mudança de entendimento sobre o papel do Estado. Privatização não é, nem pode ser, apenas uma “operação tapa-buraco”, motivada por preocupações de curto prazo com o caixa.

A principal causa do problema fiscal brasileiro – as despesas obrigatórias com pessoal ativo e inativo – não é conjuntural, de modo que a venda apressada de estatais para combater o déficit fiscal é mero desperdício.

Como a solução estrutural está no ajuste das despesas, por meio de ações como a reforma da previdência, e não na criação de receitas extraordinárias, nada justifica programas de privatização estaduais ou federal cujas metas sejam vender rapidamente a maior quantidade possível de empresas para cobrir déficits do ano corrente.

Por mais que a situação fiscal brasileira seja delicada, ações como a venda de subsidiárias da Caixa, da Petrobras e do Banco do Brasil, ou a privatização de empresas federais ou estaduais de energia elétrica e de saneamento não precisam ser feitas em ritmo de liquidação do comércio varejista.

O objetivo das privatizações deve ser deixar para o setor privado setores não estratégicos e, como consequência dessa decisão política, vender as empresas estatais que não fazem mais sentido pelo melhor preço possível, remunerando adequadamente o esforço de longo prazo da sociedade para construir esse patrimônio público.

A título de exemplo dessa abordagem, tome-se o caso recente do IRB (Instituto de Resseguros do Brasil). Na época de sua criação, em 1939, o IRB foi a resposta do Estado brasileiro a uma potencial falha de mercado pelo lado da oferta: temia-se que, por conta de um iminente conflito armado na Europa, faltassem capitais para oferecer cobertura de resseguro ao mercado segurador brasileiro (o que efetivamente ocorreu quando a guerra eclodiu).

Ao formar mão de obra especializada em seguros, fazer contratos no Brasil e em português, e internalizar produtos inovadores que surgiam no exterior, o IRB foi decisivo para o desenvolvimento das grandes seguradoras brasileiras, numa época em que a maioria não teria como acessar o mercado global de resseguros.

Com o tempo, porém, notadamente a partir dos anos 1980, o monopólio estatal do IRB tornou-se um fardo, tanto para as empresas, já então bem estruturadas e capitalizadas, quanto para o consumidor final, a quem a maior parte do custo dessa ineficiência era transferida.

Não fazendo mais sentido o exercício dessa atividade econômica pelo Estado, vieram o fim do monopólio no setor de resseguros (2010) e a privatização do IRB (2013). Isso deu às seguradoras (e aos consumidores de seguros) acesso a melhores produtos e preços.

O IRB, por sua vez, continuou líder do mercado brasileiro, agora aberto à concorrência global, e internacionalizou sua atuação, passando a fazer negócios em mais de cem países.

Ao contrário do que alguns imaginam, os ganhos de produtividade que possibilitaram esse desempenho aconteceram principalmente antes da privatização.

Tanto que, já em 2014, o IRB se tornou o ressegurador mais rentável do mundo (Willis Reinsurance Report, Londres, 2015). Posição que manteve até 2017, ano de seu IPO, e que poderá conservar quando saírem os dados do mercado global referentes a 2018.

A excelência alcançada refletiu-se no preço do IRB: em 2010, era inferior a R$ 1 bilhão. Na conclusão da privatização, foi avaliado em R$ 2,3 bilhões. Chegou aos R$ 10 bilhões no IPO e hoje seu valor de mercado ultrapassa os R$ 25 bilhões.

Nesse modelo de privatização, adotado pela primeira vez no Brasil no caso do IRB, a União modernizou a empresa enquanto preparava a venda de seu controle. No final do processo, ficou como acionista minoritária de uma companhia de ponta, que continua a se valorizar e a gerar dividendos.

Voltando ao momento atual, as privatizações pelas razões certas – cumprir a Constituição e aumentar a eficiência geral da economia – devem ser feitas dentro de um cronograma que preveja ofertas aos potenciais investidores ao longo dos quatro anos de mandato.

As estatais que já estiverem “preparadas” podem ser vendidas desde logo. E as demais em seguida, à medida que as ações para aprimoramento e valorização de cada empresa forem concluídas.

Isso dará aos investidores mais tempo para analisar cada caso e para levantar os recursos, atraindo um número maior de interessados, inclusive investidores que preferem pagar mais por participações menos arriscadas em empresas que já funcionam bem.

Certamente o retorno para o erário será maior do que em uma negociação quase simultânea de muitas empresas, independentemente do patamar de gestão em que cada uma delas se encontre.

Caso bem-sucedido de respeito pelo patrimônio público, o exemplo do IRB pode e deve ser seguido nas próximas privatizações.

Leonardo A. Paixão é doutor em direito pela USP e foi presidente do IRB Brasil Resseguros S.A. de 2010 a 2015