Por Gesmar dos Santos e Julio Kuwajima – Valor Econômico

24/06/2019 – 05:00

Os déficits dos serviços de saneamento no Brasil trazem ao Congresso Nacional uma discussão da mais alta importância. O tema é de interesse de saúde pública, do meio ambiente, da gestão da água, da economia, da qualidade de vida. Entretanto, em busca de uma solução iluminada, entre sóis e peneiras, o Brasil escolhe peneiras, de novo. Segue-se o caminho de produzir mais um ingrediente regulatório, a título de uma incerta participação privada.

A situação fiscal desfavorável no curto prazo é de fato um alerta. Porém, a alteração de fundamentos técnicos e estruturantes no marco legal e institucional pode aumentar as incertezas.

As Medidas Provisórias (MP) 844/2018 e 868/2018 que caducaram por falta de um bom debate, agora transformadas no PLS 3.261/2019, no Senado Federal, trazem de fato algumas proposições positivas, tais como: possibilidade de arbitragem e de coordenação de ações em situação de escassez de água, por parte da Agência Nacional de Águas (ANA); favorecimento de arranjos regionais para serviços de saneamento para além da atual legislação; maior ênfase à eficiência, economia de água, informação de dados. Há também alguns tímidos passos sobre drenagem urbana, sistemas de coleta e tratamento do lixo.

Entretanto, o foco é a possibilidade da transferência de parte do monopólio público para o setor privado dos serviços de água e esgotos. Para isso sinaliza o acesso privado aos recursos públicos. As principais proposições apenas criam um cenário favorável à disputa de contratos com os cerca de 670 municípios (apenas áreas urbanas destes, que têm mais de 50 mil habitantes). Ainda assim, as propostas não apresentam a melhor qualidade e clareza que se espera das normas. Nesses já existe razoável infraestrutura instalada de água e 62,5% têm esgoto coletado; por isso podem ser mais lucrativos e serão mais disputados, naturalmente.

Municípios com os piores indicadores em todos os serviços de saneamento básico continuam fora das prioridades – permanecem dependentes da União. São mais de 4.500 (menores que 50 mil habitantes). Neles, as lacunas não são simplesmente de regulação ou de substituição do público pelo privado. Falta gestão, equipes, capacitação, bons projetos, escala e investimentos. Metade desses municípios têm água com simples desinfecção e apenas 26% contam coleta de esgotos. Além disso, os 29 milhões de brasileiros que compõem a zona rural, as comunidades tradicionais e indígenas continuam dependentes dos esforços próprios, da União, de empresas estaduais de saneamento e de municípios em difícil condição fiscal.

Quatro elementos são essenciais sobre essas lacunas: 1- apesar de o tema ser urgente, a complexidade das diversas realidades pressupõe acordos mínimos, para que a questão não seja apenas uma disputa que afasta soluções dialogadas e fora da tendência mundial de discutir modelos de gestão da água com a sociedade; 2- pouco se apresenta sobre o impasse de tributo ou tarifa que viabilizem a prestação de serviços de drenagem urbana, dos lixões e da gestão de resíduos sólidos; 3- o risco de sobreposição de atividades de regulação e de papeis do Federalismo, sem as ferramentas convincentes; 4- fonte de recursos para os gastos extras da ANA, o que é estranho na teoria sobre agências reguladoras, que geralmente cobram dos regulados pelos serviços.

O PL 3.261/2019 mantém lacunas herdadas das mencionadas MPs como o aumento e a centralização ainda maior da responsabilidade e do poder da União sobre os municípios. Nasce um esboço de modelo de regulação incompleto, apressado. O papel dado à ANA no saneamento é restritivo, nominado, descritivo do que deve fazer ao regular – ou melhor, sugerir o que se deve regular, pois essa responsabilidade continua com os municípios. Sem uma teoria, modelos ou acordos que combinem o papel atual com o futuro da Agência, sobram muitas perguntas sem resposta: como vai outorgar, fiscalizar, regular ao mesmo tempo, segmentos consumidores? Como não entrar no papel que cabe aos conselhos de água e meio ambiente? Os recursos virão do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos? Isso não cabe, pois seria o setor pobre (recursos hídricos, que tem um dos menores orçamentos) financiando o rico (no caso, o saneamento com fins lucrativos). Dos cofres públicos também não é indicado, pois depende de impostos.

Portanto, somando tudo, trata-se de um modelo um tanto aventureiro, não claro, no formato atual das proposições. Além disso, se o investimento no saneamento vem mesmo do setor privado há situações que exigirão o aumento de tarifas. O fim de subsídios entre municípios aumenta o risco de incompreensão dessa possibilidade, por falta de dizer claramente o que se deseja fazer, o que se constrói. As incertezas de não aceitação pela população e as disputas judiciais são parte do cenário, e isso é o oposto da boa governança absolutamente necessária na gestão da água.

Apesar de a atual lei do saneamento, Lei 11.445/2007, ser relativamente recente, não se descarta que a ANA exerça um papel adicional nesta área, em cooperação com os órgãos de saneamento. O ponto de partida pode ser a recente trajetória da atividade regulatória no setor. Ela já apresenta impactos positivos como em Minas Gerais, Paraná, Espírito Santo, São Paulo e Distrito Federal, bem como em diversas cidades e consórcios regionais. A opção tem sido por agências de regulação mais enxutas, para um conjunto de serviços, não apenas saneamento, para ter maior escala. Isso tem um ritmo, tem particularidades que, ao não serem consideradas, incorre-se em retrocessos, como tantos outros já experimentados no setor.

Por fim, há necessidade, em qualquer hipótese de marco regulatório, de se exigir mais deliberação e comando de instâncias como os Conselhos Nacionais de Recursos Hídricos, da Secretaria Nacional de Saneamento e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Essas instituições têm maior poder e atribuições de induzir comportamentos, cooperação e obrigações nos municípios e consórcios com os piores indicadores. É fato que governos passados não fizeram essa opção de fortalecer e cobrar os conselhos, tampouco tiveram o saneamento como prioridade do Estado, e não disciplinaram os subsídios. Mas, não é sem tempo, é o caminho mais curto e capaz de reduzir as incertezas.

Gesmar Rosa dos Santos é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea.

Julio Issao Kuwajima é especialista em Saneamento. O texto expressa a opinião dos autores, não a posição oficial do Ipea.